João chegou mais cedo em casa, por volta das 18h45min. Tinha levantado às 04h00min da manhã, voltara para almoçar, à tarde foi dar campo novamente. Sua rotina, naquela época de seca, era sempre essa, indo até à noite, às vezes por volta das 21h00min. Era homem acostumado com a aspereza própria da caatinga, com a qual convivia todos os dias desde que nascera. O jogo do perde e ganha fazia parte das épocas verdes e secas. Criatório aumenta quando o ano é bom de chuva, criatório diminui quando o ano é de muita seca. Fora isso a vida corria normal com família. Sua casa, com um quintal de palma, era virada para o Norte, quando o quintal acabava, aí começava as margens do riacho que chegava a assombrar nas épocas de muita cheia, mas nas grandes secas tinha água somente debaixo do seu leito, obrigando o catingueiro cavar cacimbas. A garotada já sabia quais pontos eram mais profundos no tanque quando as enchentes não cobriam as cacimbas, ali era o local de disputa para ver quem mergulhava mais fundo. Durante o dia, quando o sol estava a pino, os peixes iam se esconder lá. Eram as chamadas locas. Na roça, sempre nas várzeas, o feijão era plantado com o milho, melancia e jerimum. Próximo do tanque, vizinho à manga, a mulher fazia um jirau, onde plantava coentro e outras hortaliças, lá os bichos miúdos não subiam para comer as plantinhas. No quintal da palma, emendado com a porta dos fundos da casa, tinha um quintalzinho, onde as galinhas ficavam e servia de espaço para algumas tarefas domésticas. O chão, coberto de ladrilhos, era aguado para ser varrido. Na cozinha havia dois potes e duas moringas para água de beber. Um fogão de barro com tijolos e uma barra de ferro com três bocas era suficiente para cozinhar o almoço. O cardápio quase nunca variava, de costume era feijão, arroz e carne. A mesa grande na sala era o lugar das refeições, onde a família toda se reunia e ninguém falava até o término. Os pratos esmaltados eram recolhidos e lavados com sabão de soda, auxiliado com folhas de malvas. De ano em ano a família ia à festa do padroeiro na vila. Era época de vestir a roupa nova, costurada por uma “profissional” do serviço. Se alguma parte da roupa sobrasse ou faltasse, era tarde demais para consertar, ia-se assim mesmo, correndo o risco de ser alvo dos maus comentários. Mas a vida era assim naquele meio... O que importava era voltar para casa com tanta novidade, com a fé renovada pelas palavras bonitas e sérias do padre.
As lembranças, agora, vagavam obscuras como a negritude da noite sem lua e meio nublada. Todos os medos pareciam se fundir no susto recente. Vira uma figura que não era gente, nem bicho, nem mato. Medo terrível, e medonha história que não sabia se contava à família. Poderia por em dúvida sua credibilidade, sua honra. Sempre fora homem destemido de viventes ou almas penadas, mas aquilo que vira era coisa que nunca tinha sido contada antes. Um arrepio percorria seu corpo permanentemente, assustava-o a cada instante que tentava esquecer, nem mesmo a lembrança das épocas boas aliviavam a de agora. A mulher já estava desconfiada que tivesse havido algo diferente, talvez um mal-estar abalara sua saúde. Os meninos já estavam indo pra cama e rezavam antes de dormir. Será que oração ajudaria? Opa! Isso é até pecado. Claro que oração ajuda. Talvez a visagem fosse punição por duvidar de oração.
Assim nascia uma nova agonia, como se não bastasse a seca e os animais morrendo sem jeito pra dar.
O jeito que não tem jeito fica sem jeito pra dar. Resta se apegar com Nossa Senhora para ao Filho por nós rogar.
Pobres humanos que a humanidade despreza, mas que o mal e o mau perseguem.
Ser vivente exige coragem, coragem de não berrar feito os bodes na seca, feito os cabritos chorando pela mãe, porque ser vivo é mais do que estar sobre a terra, ser vivo implica em um nome, numa honra construída na dificuldade da vida, na tradição da família que não se pode negar o sangue. Ser vivente e, de fato, ser gente.
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